Foda-se o propósito: nossa maior inimiga não é A.I.
Mas sim nossa falta de visão do que podemos ser e fazer
Esse é o primeiro texto sobre alternativas de sobrevivência no século XXI. Dividi esse tema em 2 artigos: esse que você está lendo, que olha por uma perspectiva mais individualista e (em breve) um segundo, onde proponho caminhos coletivos simultâneos.
Acredito que o caminho seja difícil, cansativo e contraditório mesmo. Aprender a jogar o jogo dos caras ao mesmo tempo que a gente se organiza de outras formas não é tarefa simples.
O mundo não vai ficar mais fácil
O mercado de trabalho tá cada vez mais precarizado. Olha pro lado e tenta encontrar “a profissão do futuro”. Ela não existe mais.
O tecnofeudalismo acelerou a concentração de capital de um jeito que criou 2 mundos: o mundo onde suas centenas de milhões se multiplicam até chegar aos bilhões; e outro mundo onde a nossa força de trabalho (que pra grande maioria é a única coisa que temos pra vender) tem acesso a cada vez menos capital.
Imagina uma piscina gigantesca do tamanho da cidade do Rio de Janeiro, de fundo transparente, que a gente vê o que tá rolando lá em cima. Tem uma quantidade incontável de água, mas pra gente só cai uma gotinha de vez em quando.
E aí fazem a gente acreditar que como a água tá toda ali, a nossa vista, ela pode ser acessível pra todo mundo, é só correr atrás. Você não tá vendo? A água tá lá. 1 a cada 100 milhões consegue nadar lá. Ou seja, é só fazer por onde.
Onda atrás de onda, a junção da concentração de capital com a precarização do trabalho vai tirando nossas opções de sobrevivência no mundo capitalista.
E aí eu tenho boas e más notícias
Bom, a grande pergunta é “o que a gente vai fazer quando não tiver mais “emprego”?
Pensa comigo… o trabalho já foi sobre conforto. Depois ele passou a ser nossa identidade. Pensa em como até pouco tempo atrás éramos advogados, biólogos, médicos, engenheiros.
O trabalho tava baseado na formação que desenhava nossa identidade.
No curso da aprender eu começo o primeiro encontro apresentando as pessoas e elas não podem falar o que fazem. E durante todo o curso a gente não fala.
É interessante ver como que ao mesmo tempo que rola uma dificuldade em falar de si sem falar de trabalho, o anonimato funcional dá mais leveza ao dia a dia do curso.
Só que a lógica capitalista concentrou tanto capital que o que sobrou pra pagar essas profissões fica cada vez menor.
Então se antes essa profissão te dava identidade ao mesmo tempo que te dava capital financeiro, agora esse status já quase não existe.
O salário médio do advogado brasileiro é de 7 mil reais. Sabe quanto o DIEESE calcula que deveria ser um salário mínimo? 7 mil reais.
Isso significa que se você é um advogado normal com carteira da OAB você provavelmente ganha o que é considerado piso mais básico pra sobreviver.
E aí a gente encontrou outra função pro trabalho.
O tal do propósito.
Já que não tem dinheiro, como o capitalismo fala que você tem que trabalhar mais ganhando menos?
O propósito. Essa transformação de uma parte da remuneração que antes era paga em espécie e passou a ser paga em um cumprimento subjetivo da lacuna do “porque estamos aqui”.
“Ah, pelo menos tem um propósito legal . No final a gente realmente ajuda [insira um segmento de mercado aqui].”
O problema disso é que acaba.
O propósito e a identidade não vão colocar comida na mesa nem blindar a gente do burnout. Muito menos dar pra gente capital político pra fazer frente a tudo que tá acontecendo.
E se o trabalho já não é nem propósito nem identidade, em breve nem emprego vai ser.
E aí a gente tem 2 saídas:
A primeira é continuar entubando a precarização e o amasso. Fazer cada vez mais recebendo menos. Essa é uma realidade do sistema capitalista e não vai mudar tão cedo.
A segunda é a gente criar coisas nossas. Coisas que a gente gosta. Pensa assim: se eu pudesse fazer qualquer coisa, qual é a parada que eu não teria vergonha nenhuma de fazer pra caralho?
E muito provavelmente a gente vai ter que fazer as duas por que, de novo, boletos.
A primeira má notícia é que vai piorar
Se tem uma coisa que o capitalismo ensinou pra gente ao longo da sua existência é que mesmo quando ele muda de roupa, o resultado é o mesmo: concentração de capital.
Cada revolução tecnológica que trouxe progresso, produtividade e riqueza, trouxe também novas engrenagens de concentração dessa nova riqueza produzida.
Foi assim com a revolução industrial, foi assim com a revolução informacional. Provavelmente vai ser assim com qualquer que seja o resultado da adoção de inteligência artificial.
Sob o argumento de que a vida como um todo melhorou pra todo o planeta está a realidade de que nós só ficamos com as migalhas. E como a realidade não liga pra contradições, tudo acontece ao mesmo tempo. Afinal de contas todo mundo pode ter um smartphone, papel higiênico e vacinas, ao mesmo tempo em que perdemos as casas, sofremos mais com a crise climática e se você é mulher preta e periférica suas chances de ser morta à luz do dia ainda estão em patamares medievais.
Falam pra gente que AI não vai tomar nosso trabalho, mas sim alguém que saiba mexer com AI. Isso é uma meia verdade.
Num primeiro momento sim, é isso que vai acontecer. Mas esse é um movimento inevitável. Nenhuma empresa no mundo vai deixar de economizar com pessoal se puder colocar AI pra fazer. Nem você faria. Não é sobre ética, é sobre competitividade. O capitalismo é sobre competição, gostemos ou não.
Pessoas que mexem com AI são uma ponte pra se fazer tudo com AI.
Eventualmente todos serão espremidos.
Mas, no meio disso tudo…
A primeira boa notícia é que as ferramentas ficarão disponíveis
O lado menos negativo das contradições do capitalismo é que nessa corrida por novas tecnologias, sempre há um subproduto interessante: a democratização tardia dessas tecnologias.
O smartphone lançado em 2015 como o ápice da humanidade, foi pro lixo 3 anos depois e hoje está na mão de alguém que aprendeu a usar um programa gratuito de produção musical. Essa pessoa aprendeu a fazer beats e virou beatmaker. Ela tem 100 milhões de reais na conta? Não. Mas ela achou uma fresta e criou um caminho que pode não ser chamado de sucesso no modelo que a gente vive, mas pra ela é.
Hoje com 37 anos, eu consigo olhar pra história do mundo digital e te digo com tranquilidade: tá muito mais fácil fazer qualquer coisa na internet do que era antigamente.
O próprio substack é um exemplo. Onde, 10 anos atrás, você conseguiria com 1 cadastro rápido ter acesso a um site com seo otimizado, camada de pagamento sem fricção, lógica de subscrição, analytics e gestão de audiência?
Não tô dizendo que tá fácil se virar e ficar rico na internet. Mas tô dizendo que fuçando, dá pra fazer muita coisa, muito mais rápido e com muito menos esforço que antes.
E a tendência disso é acelerar. Se você ainda não brincou no lovable ou no replit, tira uns dias e experimenta. E imagina como isso vai tá daqui uns 2 anos.
A questão é que a mesma força que acelera a precarização da nossa mão de obra, também acelera a commoditização das tecnologias, produtos e serviços. Pensa que tem nem 2 anos direito que a openAI surgiu e eles já tão passando um veneno pra organizar o economics da coisa.
Meu ponto é: os escombros desse movimento vão criar frestas que a gente tem como se aproveitar.
Só que tem um problema…
A segunda má notícia é que a gente tá destreinado
Eu tenho ajudado algumas pessoas a dar os primeiros passos no desenho desse projeto pessoal e tenho conversado com muita gente que foi demitida recentemente.
Em ambos os casos o diagnóstico é o mesmo: as pessoas não tem ideia do que fazer que não seja ocupar um cargo em uma outra empresa.
E é normal. Nós, principalmente a galera millenial, fomos treinados pras seguintes áreas: serviço público; empregos na área privada (CLT ou PJ); influencer; startupeiro que quer ficar rico; transportadores (ubers, ifoods, motoristas de todas as classes).
O problema é que tirando o startupeiro, nenhuma dessas outras ocupações nos dá espaço pra criar projetos do nosso jeito. E mesmo esse startupeiro, em geral, não tá buscando algo pra ele. Tá buscando algo que seja valioso pra alguém, pra ele ficar rico na hora de vender a startup.
No fim, a gente não treinou aprender e empreender ao mesmo tempo. O que eu venho chamando de apreendedorismo.
Muito do nosso destreino mora na falta de tempo por exemplo. Ter um trabalho e conseguir energia pra criar conteúdo depois de 2horas de trânsito é difícil mesmo.
Mas o grande vilão disso, ao meu ver, tá na nossa mancada de aceitar que somos meros consumidores.
Quando a gente usa nosso tempo livre só pra consumir, com a desculpa de “desestressar do dia de trabalho”, a gente tá na verdade trabalhando num segundo turno, só que pro grande oligopólio dos tech bros.
É difícil demais começar um projeto nosso porque nossa cabeça não tá acostumada a criar. Não tá acostumada a resolver esse tipo de problema.
Quem sou eu? O que é a minha oferta? Como eu descubro se tem gente querendo isso? Como eu escrevo sobre isso? Como eu documento essa coisa? Faço video? Texto? Como eu cobro? No que eu sou bom? Se eu fosse um empresa, eu seria uma empresa de que?
A mente ferve, entra o sabotador.
Já tem gente falando sobre isso. Agora eu tenho que ser blogueirinho então? Mas eu não escrevo bem. Eu não tenho audiência. Vergonha das pessoas que eu conheço me julgarem. Se eu me expor e ficar ridículo eu vou perder meu emprego. Não posso perder meu emprego. Melhor continuar quieto.
Se você lendo está passando por isso, eu te entendo. Mas ouve aqui: isso é uma armadilha.
E eu posso te mostrar, já que…
A segunda boa notícia é que nunca foi tão fácil começar a treinar
Isso vai ser cada vez mais comum. Esse é o novo meta do jogo: criar portfólios e construir em público.
O bom de ser um humano é que não existe um único jeito de fazer as coisas. Pode ter um monte de gente falando sobre o mesmo assunto, mas cada pessoa vai ter sua didática que vai fazer mais sentido pra uma parte específica das pessoas.
“Ah, mas se todo mundo for creator, quem vai consumir?”. Eu acho essa pergunta uma armadilha do nosso impostor. Existem 200 milhões de criadores no mundo. 8 bilhões de pessoas. Ainda falta muito pra “TODO MUNDO” ser criador.
São menos de 3% da população mundial fazendo esse rolé.
Pensando do ponto de vista de diferenciação, não faz sentido estar no top 3% de qualquer coisa?
Mas vamos assumir que isso aconteça, que todo mundo vire criador. A gente não caminhou até aqui com a maior parte das pessoas consumindo? Talvez tenha outra configuração onde todo mundo cria, porque não?
Essa pergunta trava a gente a pensar que o espaço é estreito (não é) e que não somos bons suficientes pra esse espaço (e somos).
E veja, talvez o seu portfólio não precise ter nada de criação de conteúdo nem de exposição. E pode funcionar.
O que a gente precisa fazer de fato é pensar nisso. Colocar nossa cabeça nesse movimento.
Você realmente vai deixar de criar algo seu porque talvez, num futuro distante, não vá ter ninguém pra consumir porque todo mundo cria?
E tem outra: se você pensar de forma colaborativa ao invés de competitiva, seus “competidores” podem na verdade ser seus aliados, já que cada perfil que fala o que você queria falar de certa forma está validando seu nicho de mercado. Esse é um outro jeito de falar de marketing, mas não é papo pra agora.
A meta é viver suave, não ficar rico
Sendo sincero? Ter 100 milhões de reais só é factível de verdade pra quem nasceu com vários milhões de reais. Sejamos realistas.
Você até pode conseguir, mas estatisticamente falando é impossível.
Ao mesmo tempo, aparentemente vamos viver mais anos do que as gerações anteriores. E por mais que a gente precise lutar por melhores condições de aposentadoria de forma coletiva, tá cada vez mais difícil.
Cada vez mais parece fazer sentido também pensar na visão de pistas, do
. Onde ao longo da nossa vida vamos criando pistas de trabalho, criatividade e conexões que eventualmente criem formas de viver de forma confortável e abundante.Como começar?
Além de mim mesmo, eu tô ajudando algumas pessoas nesse exato processo. O
por exemplo tá apreendendo na união dos eventos com a cultura enquanto ferramenta de saúde social.Com a
tamo tentando entender como conectar a psicologia, psicodelia e outros estudos da mente com a vivência dela como emigrante brasileira.Eu comecei esse processo comigo mesmo há pouco mais de 3 anos e no começo tudo que eu sabia era que eu era bom de conectar assuntos aleatórios. Hoje além de trampar com estratégia na Avenue, dou aula na Aprender Design, e to começando um projeto de Curadoria Cultural chamado Circo Complexo. Tudo conectado com o que eu chamo de “portfólio pessoal”.
Ainda aprendo muito, troco de ideia várias vezes. Penso em desistir, canso. Revigoro e encontro algo novo. Lapido minha oferta, pivoto a estratégia, aprofundo meu jeito de olhar as coisas. Escrevo. Me arrependo. Consigo 1 sub novo, 1 aluno novo. O sentido retorna e assim vai.
Isso pra mim já é sucesso. Pagar minhas contas, juntar uma grana, ajudar quem tá perto, levar minhas filhas na escola, pensar no futuro pra além de ter dinheiro, ter um projeto que eu possa chamar de meu, de nosso. Pra mim isso é ser rico.
Me diz o que é ser rico
Talvez seja poder ir à escola do seu filho
Em um dia qualquer
Em uma hora qualquer
Sem pedir permissão coisa do tipo
Pra mim isso é ser rico
Tem coisas que a carreira te tira “Pô isso é verdade”
Me diz se é mentira
Pra melhorar de vida tu quase que não respira
Tu quase não vê amigos
Tu quase não vê família
Tu quase não vive o tempo que te resta na vida
Se esse jeito de ver as coisas bateu contigo, talvez tenha algo aqui pra tu: eu escrevi esse guia aqui com um passo a passo pra sair do zero.
Não te prometo o milhão, mas te prometo as primeiras sinapses e os primeiros movimentos. Sabe aquela coisa de que o passo mais importante é o próximo? Então. E eu acho que o passo mais difícil é o primeiro.
E a ideia é manter isso gratuito. A não ser que algo mude e eu precise, afinal os boletos não aceitam projeto como pagamento.
Porque eu digo foda-se o propósito? Sinceridade, acho que é mais uma palavra que tinha alguma substância, mas que ficou vazia depois de tanto uso no mercado corporativo. Acabou virando mais uma ferramenta pra manter a gente consumindo ao invés de criando.
Veja, eu não desacredito do propósito não. Acho que tem gente que nasce sabendo pra que que veio e pô, lindo. Pra mim não foi assim. Eu nasci com muita curiosidade e pouca convicção. Então eu substitui o propósito pela curiosidade como motor do meu corre.
E tem funcionado. Não ter propósito me libertou pra me sentir bem com o fato de que eu me divirto descobrindo coisas. Ao invés de perseguir o meu futuro, to tentando descobrir e criar ele (eu odeio perseguir coisas).
Inclusive o tal do Ikigai tem muito mais a ver com essa busca eterna do que com algo definido. Mais um símbolo cooptado pela lógica mercantilista ocidental. Mas isso também é papo pra depois.
Pra quem não me conhece, sou Renato Mendes e eu que escrevo o Estratagema. Sou formado em comunicação, mas virei estrategista de produtos digitais por puro acaso. Quando as pessoas me apresentam falam que eu sou muito bom de conectar coisas aleatórias e ajudar elas a pensar em coisas não tão óbvias, ou aprofundar o óbvio de um jeito novo. Falo sobre cultura, tendências e estratégia, com tudo que tá no meio disso. Tento fazer todo mundo se sentir criativo e curioso.
É engraçado como esse texto me fez chegar a ponto de chorar e depois me levou pra um otimismo que eu não sentia há um tempo. Senti euforia recentemente, pensando sobre meu futuro algumas vezes, mas não otimismo.
Desde o fim do ano passado, quando fiz uma viagem muito importante, venho me questionando como posso fazer para incorporar no meu dia a dia mais daquilo que considero parte de mim. Porque, sinceramente, eu gosto de me considerar uma ótima pesquisadora (já acabou o curso, já posso falar o que eu faço hoje hehehe), mas o que mais gosto sobre trabalhar como pesquisadora de produto de tecnologia é exatamente o fato de ser boa nisso. Eu não sinto que nasci para trabalhar com produto, não me movo profundamente com métricas financeiras e já desisti de acreditar que estou fazendo pelo propósito (obrigada a meu último emprego por ter me ensinado isso à força, rs). Eu só sou boa, mesmo.
Mas eu tenho algo que me move profundamente, desde nova. Eu já trabalhei com esse tema, já atrelei minha vida profissional ao tal propósito que me move individualmente nesse mundo. O resultado foi pouco dinheiro e um sentimento intenso de não saber quem eu era uma vez que admiti que precisava ganhar mais e, por isso, mudar de área.
Ainda preciso de mais tempo para observar como me sinto sobre a ideia de criar porque criar é o propósito. Deveria ser assim e era, quando eu tinha 18 ou 20 anos, mas deixou de ser porque estou tão cansada quando o dia acaba que só quero pensar em descansar. E, infelizmente, eu ultimamente descanso consumindo (não só financeiramente falando, consumindo conteúdo de outras pessoas também). Como eu posso fazer para me aproximar da criança que criava porque criar era importante? Como deixar o trabalho no lugar que ele deveria ocupar, honrando os aprendizados que ele me trouxe mas sem que ele seja a única coisa existente na minha vida? Vou buscando responder essas ao longo do caminho, porque agora acho que não tenho mais a opção de não caminhar.
Obrigada.
sou sua fãaaa